Quem se preocupa com crianças no trânsito
Li esta semana o relatório mundial de 2019 da multinacional Dekra, da Alemanha, "Crianças no trânsito", com excelentes artigos assinados por grandes especialistas globais sobre acidentes envolvendo crianças e adolescentes. É
prazeroso ver o interesse e os cuidados que países avançados dão ao assunto na mesma medida em que é preocupante perceber a forma como o Brasil não dá a devida atenção.
No meu artigo da semana passada, Utopia imitada, comentava que na Suécia a revolução no ensino do trânsito nas escolas aconteceu já no início dos anos 1970 quando uma cientista sueca publicou estudos sobre o desenvolvimento do cérebro das crianças mostrando suas limitações cognitivas, fisiológicas, psicológicas e sociais e isso demandava cuidados especiais.
Em razão das descobertas, a educação infantil no país mudou de linha de atuação: em vez de informar, treinar e educar as crianças, o mantra passou a ser que elas deveriam ser protegidas, por não terem capacidade mental de gerenciar a complexidade do tráfego por conta própria.
Uma mudança e tal!
O relatório da Dekra expõe com riqueza de detalhes as dificuldades enfrentadas pelas crianças nas diversas etapas de desenvolvimento até se tornarem conscientes para conviver normalmente no trânsito. Problemas de audição, visão (não conseguem determinar bem a distância dos carros), naturais na primeira idade, devem ser levados em conta no ensino do trânsito.
O relatório ressalta o papel fundamental dos pais, em casa, na correta orientação aos seus filhos sobre os cuidados a tomar.
A recomendação é que as crianças já tenham noção de trânsito nas creches e jardins de infância antes de chegarem à escola. Até aos 14 anos elas precisam estar sob observação dos adultos.
Por aqui, até hoje ainda há muita gente incentivando a criança a ser o "xerife" do pai ou da mãe, fiscalizando e corrigindo o que vê de errado na conduta deles no trânsito.
Acreditam mesmo que isto é mudar comportamento, o que obviamente é um equívoco. É até verdade que muitas crianças, estimuladas pelo que ouvem, repreendem seus pais, mas daí a crer que o trânsito mudará por isto há uma distância enorme.
Bom nunca esquecer que o pai é exemplo do filho
O que me deixa estarrecido é que há décadas tateando caminhos para desenvolver nosso modelo verde-amarelo, não tenhamos ainda desenhado um consistente programa de educação para o trânsito, de amplitude nacional, que leve em conta as características regionais, e prepararmos nossa infância e juventude para o futuro mais competitivo que já começou.
Se o trânsito é o primeiro cartão de visita de uma cidade ou de um país, o comportamento do brasileiro, então, precisa bons cursos de convivência e de respeito mútuo, não para agradar estrangeiros ou visitantes mas para melhorar a qualidade de vida e a nossa própria autoestima em relação ao trânsito.
Para dar ideia da dimensão do problema, no Brasil ano passado morreram em acidentes de trânsito quase 32 mil pessoas no total (dados preliminares do Datasus), das quais 3.800 crianças.
No mundo morrem 500 crianças por dia; segundo o relatório da Dekra, a Alemanha, (83 milhões de habitantes, 48 milhões de veículos), está espantada com suas 78 crianças vítimas em 2018.
Me pergunto porque o Brasil não consegue avançar como deveria
Falta um Plano Nacional de Educação para o Trânsito, (missão do Denatran), que possa ser bem disseminado nos estados, (missão dos Detrans) e nos municípios, (missão das prefeituras). Vale dizer: falta vontade política.
É bom que se registre que o Denatran disponibiliza gratuitamente na Internet uma cartilha de trânsito para escolas, para quem quiser baixar, mas até onde sei a procura é baixíssima. Foi um trabalho do ONSV, produzido pela educadora Roberta Mantovani.
Há pouco mais de 3 anos, quando colhia material para escrever o livro Educação para o Trânsito no Brasil e no Exterior, pesquisei mais de 100 municípios brasileiros sobre como as cidades estavam ensinando trânsito nas suas escolas. Respostas pífias, evasivas ("foi da gestão passada, não temos dados", etc.) mostraram um quadro preocupante. Isto não significa que não o setor esteja totalmente parado.
Tem empresas (concessionárias de rodovias, principalmente), o Observatório Nacional de Segurança Viária, o próprio DNIT, autores de livros, cartilhas, fazendo algumas coisas. Não se pode dizer, contudo, que o Brasil ensina trânsito nas escolas. Falta muito para poder dizer isto.
Penso que chegou o momento de o Denatran voltar à carga, retomar seu projeto, se necessário, redesenhar seu programa nacional de educação para o trânsito e com um bom plano de ação, com ações dos Detrans e prefeituras, colocá-lo em prática.
Há cerca de 10 anos, a tentativa de inserção da educação para o trânsito nas escolas em alguns estados não foi adiante sob alegação de que os professores reclamavam que era mais carga sem qualquer incentivo.
Passou da hora para mudar este quadro e encontrar uma fórmula que funcione
O encerramento desapontador da Década Mundial de Ações de Segurança no Trânsito, da ONU e OMS mostrou que grande parte do mundo – Brasil no meio – não atingiu a metade de reduzir 50% das mortes no trânsito mas tem a grande chance de se recuperar entre 2020 e 2030 com a Segunda Década Mundial.
É a oportunidade de ouro para aprendermos o que não deu certo na primeira para acertarmos na segunda
Enquanto a segunda década não começa para valer o que pode fazer o educador de trânsito solitário que em esforço isolado ajuda escolas, ONGs e outras instituições? Procure se informar sobre como modernizar seus conhecimentos, baixa os livros gratuitos do site do Denatran, discuta com seus pares, veja o que outros países estão fazendo e adapte estes ensinamentos ao seu trabalho.
Há caminhos a seguir!
Quando me perguntam "quanto custa desenvolver a educação para o trânsito no Brasil? " respondo que a pergunta está incorreta.
O correto será buscar respostas para uma outra pergunta, bem parecida: "quanto custa NÃO desenvolver a educação para o trânsito no Brasil? ".
Não é difícil encontrar respostas que justifiquem uma grande mobilização nacional. Afinal, é de se esperar que alguém neste país se preocupe com a sorte das nossas crianças.
*J. Pedro Correa é Consultor em programas segurança no trânsito